Maurice de Koning
Instituto de Física Gleb Wataghin e Centro de Computação em Engenharia e Ciências
Universidade de Campinas
A água é a substância mais importante da Terra. Não só é vital para a vida, mas também é fundamental em muitas outras áreas do conhecimento, incluindo as ciências climatológicas, química, física e engenharia. As propriedades mecânicas da água na sua forma sólida, isto é, no gelo, desempenham um papel importante numa ampla variedade de fenômenos que ocorrem em escalas de tempo e comprimento muito diferentes. Por um lado, o escoamento de geleiras e placas de gelo, que estão diretamente envolvidos na dinâmica lenta do sistema climático global da Terra, ocorrem em escalas de anos e quilômetros, respectivamente. Por outro lado, o impacto de alta velocidade de pedaços de gelo com navios quebra-gelo, pilares de pontes e peças de aeronaves, e que afetam a integridade de tais estruturas de engenharia, envolve processos que ocorrem em escalas de segundos e metros.
As propriedades mecânicas do gelo dependem de detalhes sutis das interações as moléculas de água
Devido à importância do comportamento mecânico do gelo sob diferentes circunstâncias, um esforço significativo tem sido direcionado à compreensão do comportamento de deformação do gelo em termos de processos unitários ocorrendo na escala molecular. Dada a dificuldade de observar diretamente tais processos em um experimento de laboratório, grande parte da investigação é realizada usando métodos de simulação computacional em nível molecular, que fornecem ferramentas de “microscopia computacional” e que permitem a inspeção de processos ocorrendo numa escala molecular. A fidelidade de tais simulações depende criticamente da descrição das interações entre as moléculas de água e o desenvolvimento de tais modelos tem sido um campo ativo de pesquisa nos últimos 50 anos, produzindo mais de 100 modelos de interação diferentes.
No entanto, no seu desenvolvimento, praticamente toda a atenção foi direcionada para melhorar a descrição das interações da água na fase líquida, sem levar em consideração as propriedades mecânicas do gelo. Desta maneira, a resposta às deformações mecânicas, conforme descrito por este grande conjunto de modelos de água, é essencialmente desconhecida, dificultando sua aplicabilidade ao estudo da mecânica do gelo em escala molecular.
Em dois estudos recentes, o grupo liderado pelo professor Maurice de Koning, pesquisador associado do CCES, investigou a resposta mecânica fundamental do gelo, conforme descrito por um conjunto de modelos de água frequentemente utilizados. Cada estudo se concentrava em um dos dois tipos fundamentais de comportamento mecânico, o elástico e o plástico. A deformação elástica é um processo essencialmente reversível, o que significa que, uma vez que uma força externa é removida, o sistema retorna ao seu estado inicial, sem deformação remanescente. A deformação plástica, por outro lado, é irreversível, envolvendo a criação de deformação permanente que persiste mesmo após a remoção das forças externas que atuam sobre o sólido.
No estudo considerando as propriedades elásticas do gelo, verificou-se que os prótons na molécula de água desempenham um papel fundamental no que é conhecido como a anisotropia da elasticidade no gelo. O gelo é elasticamente anisotrópico, o que significa que, dependendo da direção em que uma amostra de gelo é carregada, a magnitude da resposta elástica é diferente. Comparando um conjunto de modelos em que os prótons são levados em conta explicitamente com um outro recente no qual eles foram eliminados para reduzir o custo computacional, revela que este último subestima grosseiramente esta anisotropia. Embora os modelos de prótons explícitos não forneçam resultados quantitativamente precisos em comparação com os valores experimentais, eles capturam o comportamento qualitativo correto no que se refere à anisotropia. Isso indica a importância do uso de modelos de prótons explícitos na descrição da elasticidade do gelo.
De forma semelhante, o segundo estudo investigou o papel dos prótons na deformação plástica do gelo. De nossa experiência diária, sabemos que o gelo é um material quebradiço quando deformado rapidamente. Por exemplo, um cubo de gelo que se quebra em pedaços ao cair no chão. Investigando modelos de água do mesmo conjunto considerado no trabalho sobre as constantes elásticas, verificou-se que o modelo que eliminou os prótons explícitos da descrição se comporta de maneira muito diferente, apresentando fácil deformação sem fraturar. Por outro lado, o modelo que inclui os prótons explicitamente fornece o comportamento frágil correto, exibindo fratura catastrófica quando as cargas aplicadas se tornam maiores que um determinado limite.
Ambos os estudos mostram claramente a importância dos prótons nas moléculas de água na descrição do comportamento mecânico fundamental do gelo e indicam que eliminá-los para obter uma representação computacionalmente menos dispendiosa leva a respostas mecânicas fundamentalmente incorretas.
Artigos científicos:
P.A. Santos Flórez, C. J. Ruestes and M. de Koning, Uniaxial-deformation behavior of ice Ih as described by the TIP4P/Ice and mW water models, J. Chem. Phys. 149, 164711 (2018).
P. A. F. Pinheiro Moreira, R. Gomes de Aguiar Veiga and M. de Koning, Elastic constants of ice Ih as described by semi-empirical water models, J. Chem. Phys. 150, 044503 (2019).